Brutal, nojento, violento, sensual, uma verdadeira surpresa de 208 páginas que fede à sangue e mel, se alguém ainda acha que o Morro Dos Ventos Uivantes é o mais selvagem é porque nunca escutou o Canto Negro no calar da noite.

![]() | Canto Negro Titulo Original: Canto Negro Gênero: Terror Ano: 2016 País: Brasil Autor: Ivan V. Levy Editora: Hoo |

Este livro foi uma adorável derrota contra mim mesmo, sempre torci o nariz para obras de demônios e romances históricos — O que de bom pode vir de um romance de terror de época, né mesmo? Mas é com alegria que mordo minha língua até sangrar: Canto negro é uma obra sensacional com personagens únicos; amores impossíveis; sede de vingança e poder; amantes que se odeiam; demônios impensáveis; violência física e psicológica desafiando os tabus e mitos da nossa sociedade. Quando acabei de ler esse livro me vi apaixonado por ele e precisava compartilhar com você esta minha linda história de amor.
“O demônio riu. Ninguém mais podia vê-lo, mas Basileu sentia as s mãos dele segurando seu rosto, forçando-o a olhar para cima, encará-lo. Um rabo muito longo, aveludado e negro serpenteava sobre seu pescoço, ele via aquela coisa montada no espaldar da cama, nem um pouco intimidada pelo que estava acontecendo. E Basileu compreendeu de imediato.”
Antes de prosseguir deixe-me aqui no cantinho deixar meu lamentos em ver um autor tão talentoso renegado as sombras (as más sombras diga de passagem) enquanto outros brilham por obras medíocres. Afinal de contas, não é todos os dias que encontramos alguém tão habilidosos em construir personagens, eles não valem nada e mesmo assim os amamos. E o enredo, nem se fala, é surpreendente e mesmo para aqueles que já entenderam qual é a da obra ela ainda consegue surpreender entregando exatamente o que esperamos.
Daí nós pensamos: que magia é essa? Bem, é mágico mesmo, e para entender como essa magia funciona vamos dissecá-lo, pegue seu bisturi e vamos à autópsia:
Nota: ao longo do texto haverá spoiler, porém pode ler sem medo, os trechos spoilentos estão concentrados no final e sinalizados com aviso e a cor do texto mudara para vermelho, então, viu vermelho é spoiler.
Canto Negro narra as desventuras do desgraçado Basileu, cuja a vida que já não era boa piora com um exorcismo mal sucedido realizado por Prósper. A história então se divide em duas tramas, ou melhor, linhas temporais:
A do passado onde as consequências do exorcismo que despedaça o jovem Basileu, o grego, de corpo e alma;
E a do presente com a investigação de Prósper, agora um velho em decadência, à procura de Basileu, o bruxo. Claro, não podemos esquecer da grande questão do livro: quem é Castino?
O primeiro ponto a destacar é a escrita do autor com um ótimo ritmo tornando a experiência de ver aquele mundo se formando diante do seus olhos muito dinâmica (e olha que eu nem curto romances de época). Um ponto que ficou a desejar neste romance é que mesmo sendo uma obra bem violenta o autor a atenua bastante na escrita, mas não se preocupe a violência ainda tá lá e pode te ferir.
Falando em ferir, vamos falar do grande ponto forte deste romance, os personagens:
Entre meus favoritos está o Basileu, ele inicia uma “criança” inocente e veremos seus traumas, frutos deste mundo cruel, o transformando num “monstro”...
“Este lugar desumano cria monstros humanos”
— Stephen King
…que é hoje. Este personagem tem várias camadas e a trama mostra como ele aprende a lidar com tudo isso fazendo dele um personagem palpável, frágil, perigoso, assustador e hipnótico. Bem diferente do seu contraponto:
Prósper, esse é um personagem decadente e o acompanhar é patético, triste e satisfatório. Você fica pensando o como uma pessoa pode cair tanto e mesmo assim não aprender nada. Sem falar na construção da psique deste velho, ficamos tentando entender… sporilerzinho… o mal, como pode uma obsessão se forma e ainda continuar? Como poder alguém ser tão ruim e não enxergar as coisas à sua volta e eis que estão chegamos a grande beleza deste romance: o homem pode ser muito pior que os demônios que ele tanto teme.
Quem devia ter medo de quem aqui, baby?!
O livro ainda conta com uma obsessão, obsessão essa que vão de uma forma ou de outra contagiar os leitores, afinal de contas, quem é Castino? Por que ele fica ao lado de Basileu? Por que aguenta ser tratado tão mal? A construção deste personagem é linda, podemos ver a inocência enganosa, os jogos de palavras escondendo intenções dúvidas, bom, mal, manipulado, mas afinal de contas em nome de deus ou do diabo: quem é esse maldito CASTINO!!!
O enredo também é muito rico: além de trazer as camadas do trauma de Basileu, mistérios mudando e sobrenaturais ainda invoca questões políticas e religiosas. Um convite a velhas e novas reflexões, afinal de contas, certas manipulações e hipocrisias estão em moda desde que o primeiro deus foi inventado. Aqui temos dois pontos muito positivos: a audácia do autor em mexer com esse ninho de vespa e o fato dele fazer isso bem feito.
Claro que com toda essa construção de texto e subtexto o terror e o enredo não ficou prejudicado: a construção de abertura do exorcismo é maravilhosa, o autor passa muito bem a noção de dualidade entre Basileu e o demônio. Quando falamos de exorcismo acho que as comparações com o maior clássico do subgênero, O Exorcista (William Peter Blatty, 1971), são inevitáveis. E a boa notícias é que esse livro é uma obra original que não fica à sombra do clássico e muito menos cai nos clichês do gênero. A maneira como o terror e os personagens são tratados pelos autores são diferentes, muito diferentes:
O livro do Blatty aposta no espetáculo com drama no fundo, e o apelo ao consciente coletivo do medo do demônio;
Canto Negro toma um caminho radicalmente diferente ainda tem o espetáculo, porém aborda temáticas mais profundas e complicadas como a crueldade humana. Temos fenômenos sobrenaturais competindo com abuso, estupros, hipocrisia, monstros de verdade que vemos todos os dias na TV ou até em nossas casas… quem há de temer um demônio quando a pessoa que você mais ama te transforma em objeto de desejo. Um dia essa história me assombrou muito, mas ai cresci e vi os verdadeiros monstros não levitam ou giram a cabeça em 360 graus, não, eles fazem coisas muito piores.
Antes de concluir quero muito falar sobre o maior ponto alto e para isso preciso revelar os segredos do livro, então se tiver vermelho já sabe, spoiler. Se você é daqueles que não ligam para spoilers, recomendo repensar isso para este livro, afinal de contas aqui há uma surpresa que vale muito a pena ir descobrindo aos poucos.

O enredo se constrói em torno de duas perguntas: onde está o demônio Arabeth e quem é Castino? As duas tramas se unem e descobrimos que o Arabeth e Castino são o mesmo ser. É de longe a melhor parte da história e com isso ganhamos uma maravilhosa construção de relacionamento. Ao mesmo tempo que vemos que eles se gostam também assistimos às marcas dos traumas ditados os caminhos do coração, desejos reprimidos, sentimentos selvagens lutando contra um passado e aos poucos sendo derrotado pelo tempo. Por muitas vezes enquanto lia estas páginas sangrentas me peguei pensando em Catherine e Heathcliff, obsessão, amor e violência. Uma observação: como um autor moderno o Ivan vive numa época que é permite ir muito mais longe do que Emily Brontë foi.
Tudo culmina na cena após a igreja onde o amor e o ódio se fundem num marcante beijo seguido de uma vigorosa fúria — passei o Morro inteiro imaginando quando o Heathcliff ia acabar igual ao Basileu nesta cena.
Porém, a minha cena preferida, a que acho mais bonita, tocante, é quando Castino aceita a condição humana e esta querendo o amor de Basileu e pergunta para ele:
“— Basileu… Vai me forçar? (...) Como Prósper fez com você…”
Essa cena me quebrou, ela tem tantas camadas, tantas nuances, mostra amor, medo, fragilidade, desejo de ser amado, mas amado de verdade e não possuído como um objeto. Sabe, sentir muita coisa, ela mexeu profundamente comigo, é difícil de dizer, para entender só lendo o livro e acompanhando de espinho e fogo.
“ — Não. Eu nunca irei forçá-lo.”

O livro é muito, muito bom, pena que é curto e após terminar eles nos deixa com fome de mais, muito mais.
Este livro é um diamante: um romance selvagem, violento, erótico, cruel, doce e original. Recomendo fortemente a leitura, e digo mais, corre, ele não é mais publicado, e só nos resta comprar de segunda mão. O que diga de passagem, é muito triste: enquanto editoras grandes ficam brincando de casa de folhas e publicando autores duvidoso, uma verdadeira obra prima da nossa literatura está se afogando num mar triste e silêncios.
Netflix, se Você estiver nos ouvindo: #adptaocantonegro, por favor!
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